Sorriso amarelo,
Desviar o olhar.
Fingir uma conversa.
Rir bem alto
Curtir a música,
Suspirar.
Correr a mente pelo teto,
Virar a cabeça:
Esquerda
Borboletas no estômago.
Tomar coragem,
Erguer o rosto
Espiar...
“Lúcia e Bernardo, então, tiveram pouca ou nenhuma opção de escolherem a presença um do outro – mas de um jeito peculiar, os amigos acabaram por ser quase como irmãos”
“Esperavam que eu fosse a Rapunzel desse conto, mas há muito escapei da torre, rumo à liberdade”
“Deve haver sentido e conforto numa vida limítrofe. E é isso que me preocupa, é isso que me transforma num peixe fora da água”
“Só vivo feliz na minha realidade cheia de problemas. E de súbito, me parece que é tudo belo, e não canso de olhar o mundo”
“Esta meia verdade em que vivo...”
“Por ser tão pão-dura de mim, estou me jogando fora. Esse meu regime de nada e desorganização precisa ser revisto”
“Não quero fazer o dever de física, e que se danem os positivos. O que eu quero é ser livre!”
“A coisa mais desagradável de se estar num exército não é o local, apesar de o nosso quartel ser medonho. Nem a gororoba que te servem como comida. O que é realmente detestável é ficar longe de quem você gosta, longe de sua casa, e sem ter a certeza de que está tudo bem”
“Meu coração estava apertado, e nada que eu tentava fazer para me aliviar funcionava. O céu castanho me espremia, e senti todo o peso da tempestade em cima de mim. Esmagando, esmagando...”
“Só não te amo em espanhol:
É muito feio.
Mas eu te amo”
“Meio que não dá. Tenho seu nome tatuado em minhas olheiras, e é sua lembrança que me escorre pelos olhos. Meus livros vêm escritos em suas letras, você me cerca sem saber. E me roubou as músicas, o sono e o tempo livre. Roubou-me de mim mesma”
“Meu estômago queima, minhas mãos suam e tremem. As palavras me fogem, meu corpo formiga. Não sei o que fazer com minhas mãos (não sei o que faço comigo)”
“Meu coração leve é quente e rápido, e seguro ele entre meus dedos, no espaço onde deveriam estar os seus”
“As nuvens se dissiparam, perdi as cores e fiquei no escuro. De novo”
“Não sou atriz, não consigo forçar a vida. E a vida também não suporta ensaios: é a inconstância do improviso”
“Tive a sorte de estar despreparada”
“Afinal, nascemos unicamente para a liberdade e para o amor. O resto é tudo perversão”
“Não é preciso ser perfeito. Não é preciso ser completo. Suba na ponta da sapatilha, faça a ronda do quarto. Porque aí vem a primavera”
Naquela casa empoeirada, vivia certo velho ranzinha, que acontece de ser o protagonista desta história.
Cabe, de antemão, reforçar que, por casa, leia-se apartamento, apesar de seu inquilino recusar-se veementemente a chamá-la assim. Como todo bom velho, possuía suas manias injustificáveis.
Primeiro, tratemos da casa:
Havia uns poucos móveis antigos, e várias manchas de tinta seca espalhadas no piso de taco. O encanamento vivia dando defeito; a localização não era assim tão boa. Frio demais no inverno, um calor insuportável no verão, o apartamento ainda possuía janelas difíceis de serem abertas, e a visão abrangia apenas os fundos de outros apartamentos – na melhor das hipóteses, enxergava-se uma pracinha mal cuidada.
Em todo caso, falemos agora do velho:
Talvez a moradia seja expressão concreta do interior das pessoas, ou ao menos era, nesse caso. Tal como sua casa, o velho nem sempre fora empoeirado, vazio e, afinal, velho. Mas o tempo escava aqui e ali, na terra e no peito. No fim, terminamos todos andando meio devagar, e reclamando um bocado, e visitando mais médicos do que gostaríamos.
Chamava-se Dionísio, que era o nome de se avô. E agora, mais que nunca, percebia a semelhança entre ele próprio e o Dionísio que lhe batizara: o mesmo rosto cheio, nariz grande, barba por fazer, cabelo curto. Alto e quieto (ainda que houvesse, nos últimos anos, adquirido o hábito de resmungar), cultivava poucas vaidades. Era impecavelmente limpo, e, por vezes, bebia vinho após o almoço.
Vivia só, gastando o tempo de aposentado passeando pelo bairro, visitando o Centro quando necessário. Sua paixão era, todavia, a pintura e o desenho. Sentia um prazer todo especial com o perfume das tintas, o toque do pincel, ou o som do lápis percorrendo a folha. Enchia páginas brancas, telas nuas de cor e vida, retirada dele próprio, reforçando os vincos em suas mãos firmes. De fato, era assim que funcionava: arrancava lembranças do fundo da mente, rotas de tempo e saudade, exprimindo-as em cada pincelada, numa fúria suave, contida.
Dionísio procurava nas lembranças qualquer motivo que justificasse a vida que levava no momento (como eu já disse, nem sempre fora assim, com dias ocos de sentido). Já fora feliz. Mas suas perguntas ecoavam no vento, e as respostas não se escutavam. Porque eram tão desesperadoramente óbvias que não havia alternativa além de se fazer surdo.
Princípio de agosto, ele daria início a sua rotina das quartas-feiras. Passaria na padaria de sempre, compraria rosquinhas de nata e geléia de morango, comprando, na volta, outra edição daquelas revistas de sudoku, das quais tanto gostava de solucionar. Resolveria um número considerável desses problemas, assistiria algo na TV e, depois do almoço, cochilaria.
Queria ter a sorte de acordar apenas no outro dia, mas não seria possível, de modo que deveria assistir um ou outro programa na televisão, antes de observar o movimento na pracinha e, caso estivesse de muito bom humor, pintaria. A mera possibilidade serviu para elevar seu ânimo, e foi em tal estado de espírito que abriu a porta da frente, não sem antes se vestir e perfumar adequadamente, o que contribuía ainda mais com seu bem-estar. É difícil prosseguir com a cara fechada quando se está devidamente limpo e confortável.
Esfregou os sapatos no capacho, e havia fechado a porta, quando avistou no final do corredor o rosto do vizinho, seguido do próprio. Dionísio sentia-se especialmente mal quando o encarava: é que o senhor, um pouco mais velho que ele, possuía um conjunto caprichado de cicatrizes profundas, no lado esquerdo do rosto. Iniciavam-se no queixo, e se tornavam mais intensas conforme subiam em direção a bochecha. Suavizavam-se abaixo do olho, e terminavam por desaparecer antes da sobrancelha. Mancava um pouco, e tais marcas seriam reflexos de um passado doloroso. Essa espécie de pensamento incomodava Dionísio, que manteve olhos fitos no chão, cumprimentando o outro velho com um aceno de cabeça, enquanto apressava o passo e descia as escadas.
Descendo o segundo lance, ofegava, e não percebera que a faxineira havia acabado de fazer a limpeza daquele andar – em termos de faxina, quarta-feira significava nada mais nada menos que cera.
Ele detestava aquela cera. Por mais de uma vez, cumprira o papel de velho ranzinza, e reclamara com o síndico sobre a cera e o risco eminente de quedas. Mal sabia ele o quanto estava certo.
O pé esquerdo não pousara com a firmeza necessária, e acabou deslizando, levando o resto do corpo junto. Foi o tempo suficiente para que ele se lembrasse quantas vezes, exatamente, havia reclamado sobre aquela porcaria, enquanto perdia o chão, reencontrando-o bruscamente.
Derrapava pelos degraus e, numa atitude que mesclava reflexão e instinto, conseguiu proteger o pescoço da rota de colisão. Haja o que houver (como gostava de pensar), o bulbo deveria permanecer intacto. Tinha verdadeiro pavor de perder o controle da respiração, e morrer asfixiado, buscando desesperadamente algo que o cercava. Sentiria, mais uma vez, o peito rasgar-se, e Dionísio não aguentaria uma segunda vez.
De qualquer forma, ainda havia muito com o que se preocupar. Quando finalmente atingiu o fim do lance, não sabia que parte do corpo pesado doía mais, e os movimentos lhe pareciam impossíveis. Um líquido quente escorria debaixo do braço esquerdo, sensação parecida com a que sentia por entre as pernas. Torceu para que a última fosse urina.
Pode constatar, contudo, que não iria fazer muita diferença: morria.
A visão turva abrangia somente o teto, e faltava coragem para tentar algo mais. Respirar ardia, e ele preferia que aquilo tudo já estivesse acabado. Não demorariam a acabar, de qualquer forma.
Cabeça leve e estúpida, olhos que teimavam em fechar, e um velho cansado, que já havia desistido. Morria, então. E era melhor que alguém reclamasse em seu lugar sobre a maldita cera. Sorriu. Era uma morte ridícula, mas morria com razão, como um mártir. Seria seu conforto final.
Dionísio estava certo: era uma morte muito ridícula. Mas de certa forma, todo fim é ridículo, salvo exceções, e o tempo cisma em dançar num compasso diferente a cada instante.
É um tanto melhor interromper a história nesse ponto. Pois se há fim, houve meio e princípio, tarde e manhã. Não foi diferente com ele, e convém lembrá-los, antes que se faça qualquer coisa - ainda que seja com esse velho ranzinza.